Referindo-se à descoberta da ilha da Boavista, relata Luís de Cadamosto. Por fim, chegámos ao cabo Branco; e havendo vista de esse cabo, fizémo-nos um pouco ao mar: e na noite seguinte houve um temporal de sudoeste, com vento violento; pelo que, para não tornar para trás, fizémo-nos na volta do oes-noroeste, salvo o erro, a fim de aparar e costear o tempo, duas noites com três dias. No terceiro dia houvemos vista de terra. Gritando todos terra, terra, muito nos admirámos, porque não sabíamos que naquela parte houvesse qualquer terra.
Relata ainda Cadamosto que mandou dois homens subir ao mastro, que descobriram mais “duas grandes ilhas”. Tendo fundeado os navios num porto de uma delas [Boavista] mandou marinheiros à terra que a encontraram desabitada, “[…] a não ser por enorme quantidade de pombos, os quais se deixavam apanhar à mão, não sabendo que coisa fosse o homem; deles nos trouxeram às caravelas muitos, que com paus e cacetes haviam apanhado. E, do alto, houveram vista de três outras grandes ilhas, das quais não havíamos vista, pois que uma nos ficava a sotavento, pela parte do norte, e as outras duas estavam encarreiradas uma com a outra, na direcção do sul, sobre nosso caminho, e cada qual à vista uma da outra”.
E mais à frente acrescenta: “Também lhes pareceu ver, para a parte do poente, muito ao mar, outras ilhas; mas não se distinguiam bem por causa da muita distância”. De acordo ainda com o relato do próprio Cadamosto, partiram da primeira ilha que aportaram e, correndo ao longo da costa de uma das duas ao Sul, fundearam na desembocadura de um rio, que pelas descrições de Cadamosto se trata da Ribeira Grande de Santiago.
À primeira ilha que descobriu deu o nome de “Boa Vista, por ter sido a primeira vista de terra naquelas partes”, e à outra, que lhe pareceu maior, deu o nome de “Santiago”, porque as aportou no dia de S. Filipe e S. Tiago.
Nas suas pretensões, Luís de Cadamosto é entretanto contestado e tido como vaidoso e impostor, por uns, e aceite por outros. Note-se que, até aos meados do século XIX, Luís de Cadamosto era tido como o descobridor mais provável das ilhas orientais de Cabo Verde. Porém, com a publicação da obra de José Joaquim Lopes de Lima, em 1844, as opiniões começaram a divergir e até hoje não se chegou a um consenso, nem quanto à autoria nem quanto à data da descoberta dessas ilhas.
Outros historiados, porém, aceitam a tese de Luís de Cadamosto como descobridor das ilhas orientais de Cabo Verde. Por exemplo, Duarte Leite, por exemplo, parece aceitar a autoria de Cadamosto, quando afirma que “não se deve pois duvidar de que Cadamosto, em Maio de 1456, achasse quatro das ilhas de Cabo Verde, Vitorino Magalhães Godinho, por seu turno, comentando o “Manuscrito Valentim Fernandes”, na parte onde Luís de Cadamosto é visto como impostor, retoma os argumentos ai expostos e desmonta-os um a um, fazendo um pouco de justiça a Cadamoso. Magalhães Godinho não é entretanto taxativo a favor de Cadamosto, aceitando apenas a inclusão do seu nome no rol dos prováveis descobridores dessas ilhas.
Para Godinho, aliás, “a Boavista deve ter sido reconhecida, talvez também por Noli, na terceira viagem, possivelmente a 24 de Julho, recebendo por isso o nome de São Cristóvão, que não prevaleceu sobre o primitivo que o veneziano lhe dera. O grupo oriental foi descoberto e explorado em três viagens distintas”. Como observa Damião Peres, Codine formulara esta hipótese por volta de 1902, nos seguintes termos: ‘ainsi donc l’authenticité de la reconnaissance des îles du Cap Vert le premier Mai 1460 par António de Noli, et la découverte de ces îles de 25 Juillet 1456 par Cadamosto en compagnie d’António Usodimare et d’un capitaine portugais dont le nom n’a pas été conservé’»
Concluindo, nenhuma das hipóteses aqui arroladas, quanto a nós, nos indica com segurança o verdadeiro descobridor e a data da descoberta das ilhas orientais do Arquipélago de Cabo Verde, nomeadamente a ilha da Boavista. Não havendo uma documentação que nos permitisse corroborá-las ou refutá-las, no estado actual da investigação sobre a matéria devem ser tidas, no entanto, em consideração.
Face a todos esses argumentos, consideramos Luís de Cadamosto o descobridor mais provável das ilhas orientais de Cabo Verde e, consequentemente, da ilha da Boavista, em 1456, como ele mesmo narra na sua “Relação de Navegação II”.
O arranque do povoamento da ilha da Boavista: as doações do gado bravo
A ocupação da ilha da Boavista está intimamente ligada ao aproveitamento de um dos seus produtos naturais, que constituiu, aos olhos dos primeiros colonos, o seu principal potencial económico: o pasto, que proporcionou a criação de gado, para fins económicos.
Neste sentido, devemos assinalar antes de mais, que assim como o processo de povoamento do Arquipélago de Cabo Verde, o da Boavista não se realizou simultaneamente em todo o seu espaço geográfico. Por exemplo, enquanto os primeiros núcleos populacionais da Boavista surgem na zona Sul-Sudoeste da ilha por volta de 1490, quando foi ocupada com a finalidade de explorar o gado bravo nela que tinham sido largados a esmo, a primeira povoação no interior da ilha só é fundada por volta de 1650 e o último centro populacional, o antigo povoado do Porto Inglês, hoje Cidade de Sal-Rei, só emerge por volta dos meados do século XVIII. Vê-se portanto que o povoamento da ilha da Boavista se efectivou numa curva temporal de mais de dois séculos e meio.
A primeira fase do povoamento, entendemo-la como a ocupação da Boavista com o gado bravo e escravos para o pastorear. Inicia-se nos finais do século XV, precisamente quando em 1490 o duque de Beja, D. Manuel, doa a Rodrigo Afonso, que já era donatário da metade Norte de Santiago, o gado bravo da ilha da Boavista, para fins de exploração económica dos seus produtos, conforme se diz no próprio alvará de doação de 31 de Maio do referido ano, confirmado pelo próprio D. Manuel, sendo já rei, em carta de doação de 29 de Outubro de 1496.
Senna Barcellos informa que a ilha da Boavista se encontrava deserta à data da doação do gado bravo a Rodrigo Afonso, em 1490. Isto é, antes do ano de 1490 a ilha da Boavista se encontrava desabitada, encontrando-se ali apenas o gado bravo. Cruzando as duas informações, vê-se que Barcelos não considera os escravos referidos por Carreira em número suficiente para os considerar habitantes, pois nem os refere na sua informação.
Dizer que Rodrigo Afonso levou escravos da Guiné para a ilha da Boavista, subentende-se portanto que houve nesses primórdios da ocupação da ilha, sob a sua responsabilidade, alguma importação de escravos directamente do continente africano para essa ilha. Aliás, pela carta régia de 9 de Abril de 1473, ao doar-lhe a capitania do Norte de Santiago, o rei D. Afonso V outorgava-lhe “[…] todolos priuilegios framquezas e liberdades que per noso priuilegio temos outorguados aos moradores da dita jlha […]”, incluindo o de importar escravos da Costa ocidental de África.
A corroborar essa hipótese, Christiano José da Senna Barcellos escreve que, “doada a ilha, n’aquellas condições, a Rodrigo Afonso, foi este, certamente, quem n’ella introduziu os primeiros habitantes oriundos da Guiné, para pastorearem e guardarem o gado”. Neste mesmo sentido, Manuel Múrias diz que “em 1490 Rodrigo Afonso começou a exploração da Boa Vista e Maio, levando para lá escravos da Guiné e outros para a guarda de gado que para lá mandou ir de Santiago”.
Sobre as primeiras habitações da ilha, escreve Christiano da Senna Barcellos escreve “[…] que foi em 1490 que em S. Christovam se construíram as primeiras choupanas e se deu o começo ao povoamento com pretos mandados de Santiago”.